quarta-feira, 19 de maio de 2010

Nascidos fora da civilização ocidental... e em bordéis!


Falemos um pouco dos filhos da puta. Quando ouvimos alguém dizer a outro “seu filho da puta”, talvez não liguemos muito para o significado cultural que esse termo tem. Nós conhecemos a puta como a mulher da vida, a prostituta. No entanto, não devemos entender como a profissional que presta serviços sexuais, mas sim como “a outra”, a “não oficial”, aquela que está a margem do socialmente aceitável.
Partindo dessa idéia, torna-se mais fácil analisar o filme Nascidos em Bordéis (Born into Brothels: Calcutta's Red Light Kids), isso porque ele trata exatamente de crianças filhas de prostitutas do distrito da luz vermelha em Calcutá. Quando se assiste ao filme, a impressão que temos é a de estarmos assistindo a um documentário de alguma rede especializada de TV por assinatura. Aquelas crianças são verdadeiras pérolas, jogadas entre os porcos, que jamais terão seu brilho reconhecido a não ser que alguém surja e possa polir a dar a elas o brilho “verdadeiro”. E isso de fato ocorre, quando surge a fotógrafa inglesa Zana Briski em suas vidas.
A idéia de mostrar o mundo através dos olhos de crianças pobres é muito interessante. Isso nos evidencia que a fotografia parece ter mais a ver com sensibilidade do que necessariamente com técnica, e isso podemos ver nas belas imagens captadas pelas crianças. Até aqui o documentário é realizado com a mais nobre das intenções e comove a todos nós, seja pela persistência de Zana, seja pelo carisma que as crianças transmitem durante toda a película. No entanto, ao olharmos nas entrelinhas, percebemos todo um discurso e visão de mundo ocidental que permeia o documentário do começo ao fim.
Como tudo no mundo acadêmico, quando buscamos fazer ciência, escapando do senso comum, precisamos aprender a prestar mais atenção nas perguntas que algo nos incita do que nas respostas que recebemos. E ao olharmos o filme sobre essa perspectiva, começam a surgir várias duvidas que antes passaram despercebidas.
Quem são as mães dessas crianças? Por que elas nunca tem voz durante o filme? Quem são as pessoas em geral que vivem no distrito das luz vermelha? Qual a realidade social, econômica, e principalmente cultural que constrói essa realidade? São perguntas que aos poucos vão revelando o maior pecado cometido pelos documentaristas responsáveis pelo filme: uma visão etnocêntrica e reducionista sobre a complexidade da realidade do outro.
Em poucas palavras, podemos dizer que a intenção do filme é transformar o “outro”, tornar sua vida melhor, afinal conseguimos ver neles o potencial para quem sabe um dia ser, como eu posso dizer... serem como nós!
Durante todo o período de colonização da América, o que ocorreu foi exatamente isso, os europeus chegaram aqui e pensaram: “pobres nativos, são tão inferiores e incapazes. Mas nós podemos lapidá-los e quem sabe um dia eles sejam como nós”. E assim começou o encobrimento do outro, do não europeu. Isso ocorreu porque eles(os europeus) tinham um parâmetro muito bem definido do que era bom e do que era mal, em poucos palavras, um “pré-conceito” que guiava a maneira como olhavam para aqueles povos.
Da mesma maneira, percebemos isso no documentário. As pessoas a volta das crianças não tem voz porque não interessa o que elas pensam, já estão todas perdidas mesmo, viemos aqui foi para salvar esses pequenos, são eles quem merecem a nossa atenção. Podemos perceber como os autores do filme deixam transparecer toda uma visão ocidental de civilização, do que é certo e do que é errado, e principalmente de que são eles, os indivíduos civilizados, os portadores da “luz” que poderá iluminar o caminho desses indivíduos, tão castigados pelas contingências de sua própria história.
Segundo o historiador Josep Fontana, essa tendencia etnocentrica é uma herança profundamente enraizada que acabou sendo herdada por toda a civilização ocidental, influenciadas diretamente pela Europa Em suas próprias palavras: "a Europa é uma comunidade diversificada e mestiça, cuja história real ignoramos porque o relato que construímos para explicar seu desenvolvimento baseia-se na visão de uma série de espelhos deformantes, a partir dos quais nos definimos em contraste com imagens enganosas do outro". Essa tese é defendida pelo autor no livro A Europa Diante do Espelho.
Isso pode soar como exagero, como uma distorção do que é mostrado no filme, mas na verdade não é. Repare como os adultos só aparecem como indivíduos irresponsáveis, brutos e ignorantes, como se essa atitude já estivesse enraizada no seu comportamento, e isso nos faz perder o interesse em perceber todo o contexto em que o documentário é criado. O que percebemos é um recorte em torno das crianças, sob uma perspectiva quase que propagandística; elas se tornam “produtos”. Quem ao redor do mundo não sentiu vontade de criar um fundo (isso se não o fizeram de fato) para ajudar essas crianças? Se você tivesse dinheiro compraria as suas fotos para que elas fossem um dia para uma universidade? Não seria ótimo se algum dia elas pudessem comprar as mesmas coisas e ter acesso a todas as maravilhas do mundo globalizado em que vivemos? Provavelmente falta isso para que possamos vê-las mais próximas de nós, e não mais como “os outros”. É mais prazeroso olhar no espelho e ver o que nos é familiar do que olhar em uma janela e ver lá fora algo que nos desagrade.
Esse tipo de “filme da vida real” começou a se tornar um clichê no cinema dito estrangeiro. Sempre que se fala em um filme estrangeiro produzido em países emergentes, quase automaticamente nos vem a cabeça os retratos das mazelas de uma sociedade contraditória, que busca quem sabe um dia alcançar o patamar civilizado. Filmes como “Cidade de Deus” e “Quem Quer Ser um Milionário” são sinônimos no exterior de representações do que seria a “realidade” dos outros povos fora do contexto dos países mais ricos e desenvolvidos. Não que esses filmes deixem de ter todo o seu mérito(e nem o documentário de Zana Briski), eles apenas nos apontam como esses discursos etnocêntricos estão profundamente enraizados em nossa sociedade, e como tendemos a olhar outros povos e outras culturas como se fossem crianças, que precisam ainda aprender a dar os primeiros passos para quem sabe um dia, poderem andar como nós.
É isso que Zana faz, mesmo sem o perceber. Ela lança todo um olhar pré-determinado sobre uma realidade e cultura complexas, e talvez seja por isso que seu projeto não deu certo no final; ela ignora todo um mundo que existe em torno daquelas crianças. Assim o foi com os Europeus na América, com os Norte Americanos no Iraque, com os portugueses e os índios... Seriam aquelas crianças amáveis tão diferentes dos meninos marginais que tanto tememos e evitamos no dia a dia?
Eu termino essa postagem com mais uma pergunta: Será que aquelas crianças tinham algo mais pra nos dizer do que um desesperado pedido de socorro?


O espelho reflete certo; só não erra porque não pensa.
Fernando Pessoa




Andrei S. e Silva

8 comentários:

  1. Sem dúvida, esse é um lado que deve ser levado em conta que eu não tinha reparado. Fiquei mesmo com vontade de ajudar aquelas crianças ou então fazer algo parecido com crianças daqui mesmo. Eu só sei que isso tudo é muuuuito complicado. Mas mesmo assim, a Zana é digna de muita admiração. :D

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  2. Acho que relutei muito para aceitar que ali havia a visão etnocêntrica que tanto vemos desde a colonização. Mas o texto do Andrey me ajudou a dar uma clareada nas ideias. Concordo, Zana, mesmo sem perceber, está ali aplicando seus ideais de certo/errado, bom/mal.
    Mas vou fazer uma ressalva, temos que considerar as intenções das pessoas em tirar as crianças daquelas condições precárias - até porque elas mesmas reclamam do mundo em que vivem.

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  3. Há uma visão etnocêntrica implícita no documentário, mas sem dúvida o apelo social sobrepõe-se a ele e torna a película maravilhosa, digna do Oscar que ganhou.

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  4. Pela primeira vez,o título mais discriminado de nossa cultura, o de “filhos da puta”, ganham espaço para um perfil mais humano, cujo interior revela a condição universal da infância e do talento, indiferente da natureza social. Agora, o ideal a se fazer não ficar discutindo as visões acerca do documentário e sim buscar soluções para os problemas apresentados que, infelizmente, também acontecem aqui em nosso país.

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  5. acho engraçado falar de Cidade de Deus por exemplo, já que o filme, apesar de mostrar miseria aclamada pela critica americana e europeia, foi produzido no Brasil, por brasileiros. analisem isso: qual é a visao de quem fez esse filme entao? europeia que nao é. e acho que criticar a Zana ou outros que fazem trabalhos parecidos com o dela nao levam a lugar algum. ate onde eu sei, ela contribuiu muito mais do que eu jamais contribuirei so por sentar na sala da faculdade e discutir esse filme. e tbm nao da para falar que ela nao fez nada, como foi dito no texto, pq nos nao sabemos o que aconteceu com as crianças depois que ela foi embora.

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  6. Ninguém tá duvidando o quanto honroso foi o trabalho da Zana. A questão é 'nós' como possuidores da cultura superior. A vida das crianças é cruel? É sim. É sofrida? É sim. Sim, temos que fazer alguma coisa. Mas como realmente é a cultura deles? Fazer universidade é a prioridade pra eles? Antes de qlq atitude e pensamento, devemos olhar por todos os ângulos e não nos colocar melhores ou piores diante disso.

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  7. Confesso que esperava que o documentário fosse mais chocante - não que a própria realidade já não seja chocante o suficiente.

    Já quanto a questão da Zana é fato que há mesmo um pouco de etnocentrismo, como já foi comentado aqui, ir pra faculdade é prioridade para essas crianças? No entanto, ainda acredito que "a tia Zana" teve algumas intenções boas.

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  8. Respondendo a uma pergunta feita no texto. As mães dessas crianças não tem voz no filme porque a intenção foi mostrar o lado das crianças e não todos os lados da história, como no jornalismo.
    No mais, achei bem pertinente a comparação do final. Daquelas crianças com as marginalizadas que vemos todos os dias.. A história de descaso e abandono se repete, em todos os lugares, todos os dias..

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